Quem diz isso é o economista Edmar Bacha, criador da expressão na década de 70 e um dos principais formuladores do Plano Real. “Talvez o termo composto proposto por Delfim Netto seja hoje mais apropriado: Ingana -impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana”, afirmou. Com o aumento da renda no Brasil, já não é mais adequado retratar o país como uma Belíndia, mistura entre a riqueza da Bélgica e a miséria da Índia.
Consultor-sênior do banco de investimento Itaú-BBA, Bacha falou à Folha sobre os 15 anos do Real. Ele elogiou o presidente Lula, a quem atribuiu dons “camaleônicos” que permitiram o aprimoramento da economia, mas criticou a estratégia petista de demonizar as privatizações. A entrevista foi feita no Instituto de Estudos Econômicos da Casa das Garças, presidido por Bacha.
FOLHA – O Real de FHC trouxe estabilidade monetária. O Real de Lula produziu crescimento de renda, aumento do crédito e emprego formal. A comparação é apropriada?
EDMAR BACHA – Não é tão simples assim. Em 1994, o Real trouxe uma parada súbita e duradoura da inflação, o que não é pouca coisa. O governo de Fernando Henrique também fez reformas difíceis, das quais o presidente Lula beneficiou-se. Além disso, os deuses determinaram sucessivas crises internacionais no nosso período [México em 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Argentina em 2001]. Tivemos um cenário internacional muito hostil. O Lula teve o benefício de herdar as reformas já feitas. Teve, com elas, liberdade para administrar o Estado. Além disso, contou com o céu de brigadeiro. Nunca antes na história dos povos houve um período de crescimento tão vigoroso quanto o verificado entre 2002 e 2007.
FOLHA – E os méritos de Lula?
BACHA – Em primeiro lugar, Lula sempre teve muito presente a importância da estabilidade de preços para manter o poder de compra dos salários. É uma qualidade dele, não do PT. O presidente também aprofundou os programas sociais e demonstrou uma impressionante capacidade camaleônica. Quando viu que um programa não dava certo, simplesmente o abandonou. Quando percebeu que o Fome Zero não funcionava, tratou de aperfeiçoar o Bolsa Escola. Na educação foi a mesma coisa. O PT dizia que ia acabar com os sistemas de avaliação, extinguir o Provão. Não só não acabou como também melhorou o modelo que herdou -o Enem pode até vir a substituir o vestibular. Vejo como um talento essa sua capacidade de reconhecer os problemas, de ouvir os melhores conselhos e dispensar as porcarias que lhe sopram no ouvido.
BACHA – Em primeiro lugar, Lula sempre teve muito presente a importância da estabilidade de preços para manter o poder de compra dos salários. É uma qualidade dele, não do PT. O presidente também aprofundou os programas sociais e demonstrou uma impressionante capacidade camaleônica. Quando viu que um programa não dava certo, simplesmente o abandonou. Quando percebeu que o Fome Zero não funcionava, tratou de aperfeiçoar o Bolsa Escola. Na educação foi a mesma coisa. O PT dizia que ia acabar com os sistemas de avaliação, extinguir o Provão. Não só não acabou como também melhorou o modelo que herdou -o Enem pode até vir a substituir o vestibular. Vejo como um talento essa sua capacidade de reconhecer os problemas, de ouvir os melhores conselhos e dispensar as porcarias que lhe sopram no ouvido.
FOLHA – E os pecados?
BACHA – Tem um pecado que só não foi mortal devido à situação econômica favorável. O governo Lula abandonou as reformas, aparentemente porque viu que era muito complicado lidar com o Congresso depois do mensalão. O governo aprovou duas ou três coisas logo no início, depois parou. Após o mensalão, tratou de fazer as composições estritamente necessárias para governar.
BACHA – Tem um pecado que só não foi mortal devido à situação econômica favorável. O governo Lula abandonou as reformas, aparentemente porque viu que era muito complicado lidar com o Congresso depois do mensalão. O governo aprovou duas ou três coisas logo no início, depois parou. Após o mensalão, tratou de fazer as composições estritamente necessárias para governar.
FOLHA – Que reformas foram adiadas?
BACHA – Refiro-me especialmente a uma palavra que virou anátema sob Lula: privatização. Se existe um pecado mortal no atual governo, é o de demonizar os mecanismos que permitem ao setor privado participar mais ativamente da provisão de bens públicos que tradicionalmente eram reserva do Estado.
BACHA – Refiro-me especialmente a uma palavra que virou anátema sob Lula: privatização. Se existe um pecado mortal no atual governo, é o de demonizar os mecanismos que permitem ao setor privado participar mais ativamente da provisão de bens públicos que tradicionalmente eram reserva do Estado.
FOLHA – Mas a palavra privatização é impopular inclusive no PSDB…
BACHA – Sim, é verdade. Fui assessor da campanha do Mario Covas. Nós é que inventamos a palavra “desestatização” porque ele não queria usar privatização. E, quando Covas pregou o choque do capitalismo em um discurso, passou o resto da campanha se desculpando, dizendo que não lhe tinham interpretado corretamente.
BACHA – Sim, é verdade. Fui assessor da campanha do Mario Covas. Nós é que inventamos a palavra “desestatização” porque ele não queria usar privatização. E, quando Covas pregou o choque do capitalismo em um discurso, passou o resto da campanha se desculpando, dizendo que não lhe tinham interpretado corretamente.
FOLHA – Por que esse discurso antiprivatização é tão poderoso?
BACHA – As pessoas se convenceram de que, se algo é estatal, isso lhes pertence, quando muitas vezes o que lhes pertence são apenas os custos de sustentação da estatal.
BACHA – As pessoas se convenceram de que, se algo é estatal, isso lhes pertence, quando muitas vezes o que lhes pertence são apenas os custos de sustentação da estatal.
FOLHA – Dado que tucanos e petistas têm a mesma receita contra a crise econômica, é possível formular um discurso eleitoral de oposição?
BACHA – Em termos de resposta à crise econômica, os limites são estreitos mesmo, mas é um retrato do amadurecimento do país. Felizmente ninguém está propondo o socialismo do século 21 como resposta à crise. Esse amadurecimento também é produto do Plano Real. Antes dele havia sempre presente, no cardápio de alternativas políticas, a ideia de que o Brasil podia ir para qualquer lado.
BACHA – Em termos de resposta à crise econômica, os limites são estreitos mesmo, mas é um retrato do amadurecimento do país. Felizmente ninguém está propondo o socialismo do século 21 como resposta à crise. Esse amadurecimento também é produto do Plano Real. Antes dele havia sempre presente, no cardápio de alternativas políticas, a ideia de que o Brasil podia ir para qualquer lado.
FOLHA – O senhor criou o termo Belíndia para retratar a desigualdade social. O termo ainda é válido?
BACHA – A desigualdade ainda é um traço forte, mas a combinação de crescimento com estabilidade e programas sociais melhora muito a parte “Índia” do Brasil. Sob esse ponto de vista, não é mais correto falar em Belíndia. Talvez o termo composto proposto por Delfim Netto seja hoje mais apropriado: Ingana -impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. De qualquer modo, pelo menos conseguimos evitar a Banglabânia -Bangladesh com Albânia- que Mário Henrique Simonsen tanto temia.
BACHA – A desigualdade ainda é um traço forte, mas a combinação de crescimento com estabilidade e programas sociais melhora muito a parte “Índia” do Brasil. Sob esse ponto de vista, não é mais correto falar em Belíndia. Talvez o termo composto proposto por Delfim Netto seja hoje mais apropriado: Ingana -impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. De qualquer modo, pelo menos conseguimos evitar a Banglabânia -Bangladesh com Albânia- que Mário Henrique Simonsen tanto temia.
FOLHA – O Real trouxe estabilidade ao país, mas também o risco renitente de sobrevalorização cambial. Como resolver esse problema?
BACHA – Trata-se de um dilema natural do sistema de câmbio flexível aliado ao regime de metas inflacionárias. É um problema mesmo. Para atacá-lo, poderíamos tornar o real uma moeda conversível de fato, pondo fim ao estigma da evasão de divisas e à mentalidade de que as pessoas não podem manter o dinheiro lá fora. Seria uma maneira natural de evitar a valorização excessiva do real. Agora que o governo está propondo acordos de trocas comerciais usando moedas nacionais com a Argentina e a China, inclusive para desbancar o dólar, talvez seja a hora de observar que tudo isso seria muito facilitado caso o real fosse uma moeda conversível.
BACHA – Trata-se de um dilema natural do sistema de câmbio flexível aliado ao regime de metas inflacionárias. É um problema mesmo. Para atacá-lo, poderíamos tornar o real uma moeda conversível de fato, pondo fim ao estigma da evasão de divisas e à mentalidade de que as pessoas não podem manter o dinheiro lá fora. Seria uma maneira natural de evitar a valorização excessiva do real. Agora que o governo está propondo acordos de trocas comerciais usando moedas nacionais com a Argentina e a China, inclusive para desbancar o dólar, talvez seja a hora de observar que tudo isso seria muito facilitado caso o real fosse uma moeda conversível.
Entrevista com Gustavo Franco
Gustavo, um dos temas mais discutidos no
Brasil é a taxa de juros. Recentemente você se tornou uma voz importante que
acredita que poderíamos já praticar taxas de juros similares às da zona do
Euro. Como viabilizar esse cenário?
Gustavo Franco: Somos o campeão mundial de juros há muitos anos; já é tempo de
assumir que há algo de patológico nesse comportamento. Temos praticado as
“metas de inflação” tal como se já tivéssemos alcançado a “normalidade” em
matéria de juros e contas públicas, o que, infelizmente, não é o caso. Parece
que a crise fiscal do Hemisfério Norte fez parecer que a nossa situação é
melhor do que realmente é.
O fato é que sem uma melhora
substancial no déficit nominal (e no superávit primário), não vamos conseguir
reduzir muito substancialmente os juros sem acordar a inflação. Trata-se,
portanto, de mudar a mistura: menos “política fiscal” permite mais
“flexibilização monetária”.
Olhando para 2012 e os
gastos que o governo terá, inclusive com aumento substancial do salário mínimo
(e consequentemente a expectativa de consumo maior), não corremos o risco de
termos o retorno da inflação se a Selic cair demais?
G. F.: Sim, corremos o risco. A determinação presidencial de reduzir os
juros é louvável, mas se o Palácio não providenciar uma melhoria na política
fiscal vamos rumar na direção do “mix” argentino, onde a inflação se aproxima
de 20%, há manipulações e muita propaganda sobre a manutenção do crescimento,
ainda que meio trôpego, e provavelmente insustentável. Não é o caminho que
devemos perseguir.
A atual direção do Banco
Central optou por conter a inflação com a adoção das chamadas medidas
macroprudenciais. Nesse meio tempo, a crise na Europa se agravou - o que de
certa forma contribuiu para o aumento de preços e desaquecimento econômico em
todo mundo. O Brasil pode aproveitar-se deste momento ou sofrerá com ele?
G. F.: Pessoalmente, não gosto de medidas “macroprudenciais”, pois sob
este título o que se pratica, geralmente, é controle quantitativo do crédito e
tributação disfarçada, o que antigamente era chamado de “repressão financeira”.
O impacto dessas medidas é simplesmente o de aumentar o “spread” bancário, ou
seja, um aumento de taxas de juros que incide apenas para o crédito (para o
setor privado).
O fato é que essas medidas
ajudaram o Brasil a parar de ferver, mas em níveis de atividade e emprego ainda
muito altos. A crise na Europa tem tido alguma influência deflacionista mas
nada nem próximo do que se observou em 2008, de tal sorte que esta nova safra
de reduções na Taxa Selic precisa ser calibrada com enorme cuidado.
O desejo de crescer de
forma sustentável nos acompanha há um bom tempo. Não seria o momento de olharmos
com carinho para possíveis alterações na política fiscal, incluindo uma
possível elevação no superávit primário?
G. F.: Claro que sim, está mais do que na hora. Na verdade, há anos que
estamos diante desse desafio. Os governos fazem o possível e o impossível para
procrastinar esse momento, face aos custos políticos de curto prazo. É a miopia
clássica dos políticos, que não percebem o tamanho do benefício que pode ser
gerado no futuro. Enfim, estamos perdendo tempo e ajudando a nutrir a máxima
segundo a qual somos o país do futuro que nunca chega.
No livro "Cartas
a um Jovem Economista", você teve a oportunidade de conversar
com um público jovem e que está se preparando para entrar no mercado de
trabalho. Algumas projeções colocam o Brasil entre as quatro maiores economias
do mundo daqui algumas décadas. Qual o peso dos jovens na nova realidade
econômica do Brasil?
G. F.: É gigantesco. As mudanças demográficas dos últimos anos nos
transformaram em um país com um inchaço nas faixas etárias dos iniciantes no
mercado de trabalho, todos empregados e com fortes percepções de que é enorme a
“taxa de retorno” do investimento em educação é qualificação.
Há muito otimismo no ar, e por
isso o Instituto Gallup aferiu que o Brasil ocupa a 24ª posição no ranking de
países sobre “felicidade” e a 1ª do mundo em “felicidade esperada para cinco
anos à frente”. Isto é estranho para um país que ocupa a 83ª posição no ranking
do Índide de Desenvolvimento Humano (IDH), e só se explica a partir de um
fator, aliás, como ficou bem demonstrado no estudo do CPS-FGV-RJ,
de Marcelo Nery: o fator é a juventude.
Um dos pontos mais
delicados em nosso país é justamente a falta de mão de obra especializada. Em
que medida as reformas na educação e no nível do ensino profissionalizante são
fundamentais para alcançarmos o projetado sucesso?
G. F.: O ponto crucial é o aumento de vagas, e isto tem ocorrido
sobretudo a partir de estabelecimentos privados. No ensino universitário, a
rede pública estagnou e se elitizou a despeito da demagogia em se manter a
gratuidade das mensalidades, que beneficia apenas aos filhos da classe média
abastada para cima.
Enquanto isso, o ensino
universitário noturno talvez tenha multiplicado por cinco as suas vagas nos
últimos 10 anos. O governo prefere gastar dinheiro dando bolsas para os
estudantes na rede privada (PROUNI) a cobrar anuidades na rede pública. Eu não
consigo entender.
Gustavo, obrigado pela
participação. Por favor, deixe um recado final aos nossos muitos leitores
jovens que admiram sua trajetória.
G. F.: O Brasil é um país jovem cheio de estruturas velhas, por isso
somos uma explosão de empreendedorismo e vontade de vencer, mas num ambiente
ainda dominado pelo privilégio e pelos cânones do patrimonialismo. O país
precisa se renovar. Em boa medida, a hiperinflação era um sintoma dessa batalha
entre o novo e o velho. Os problemas não foram inteiramente resolvidos, longe
disso. A juventude será a principal força na direção da mudança, e há muito o
que fazer.
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